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"Desenho"...

Há tempos, uma colega mostrou-me a fotografia de um quadro que retratava a igreja de uma aldeia. Obra de um parente seu. As cores eram vivas, quentes, cheias de alegria, como se o sol estivesse em todo o lugar, na torre, na cruz, no sino, nas paredes, nos muros, nas árvores envolventes, num casario indefinido e em carreiros tortuosos. Um quadro em que a realidade se tinha transformado numa visão que só um artista consegue colher. Neste caso, o quadro era quente, quente no tempo, quente na fé, quente no calor humano, quente para os não crentes, apenas quente, cheio de todos os tipos de calor. Nunca mais o esqueci. É uma daquelas obras que fica registada para sempre. Um dia cheguei a passar pela localidade em questão. Vi a igreja, as paredes, os muros, o arvoredo, o velho casario e os tortuosos carreiros. Vi. Gostei. No entanto, gosto mais da lembrança do quadro. Muito mais, porque apesar de ter feito a visita num dia de calor, procurei os outros calores, mas não os encontrei, apenas me recordo deles através do quadro. A arte é isso mesmo, obriga-nos a sentir o que queremos ver e não vemos.
Gostava de o ter. O meu desejo ficou a pairar no ar. Arrastou-se no tempo, como sempre me acontece, até que, simbólica e inesperadamente me ofertou dois desenhos. Disse-me que os tinha encontrado, eram banais, simples, nada que se compare à riqueza de um quadro estruturado e elaborado como o da igreja. Dois desenhos, um em papel de um simples bloco e o outro num papel cinzento daqueles que se usam para limpar as mãos. Timidamente, ficou à espera da minha reação perante materiais tão pobres. Deliciei-me com tudo, com a falta de qualidade dos materiais e com a beleza e nobreza dos conteúdos. Aqui estão, a meu lado. Olho-os e sempre que olho para os desenhos sinto que despertam emoções escondidas, retraídas, ignoradas, mas reais, que acabam por emergir na minha mente. O pescador, de ar tranquilo e feliz, lançou as redes e apanhou os peixes. Os peixes não dão a entender que estejam aflitos ou infelizes. Olhando bem, acabo por ficar na dúvida, quem é que capturou quem? O pescador os peixes, ou os peixes o pescador? Precisamos de alimento para o corpo, mas precisamos, também, de alimentos para a alma, neste caso, os peixes, as almas, aprisionam nas suas redes o pescador. Um pescador de almas a ser pescado por gentis e belas almas. O ar feliz e tranquilo do pescador não é mais do que a comunhão entre o corpo, a alma e a vida.
O outro desenho, em papel de limpar as mãos, esconde uma figura humana, irónica, a rir-se com desprezo para as futilidades da vida. Tudo é efémero, demasiado efémero a ponto de poder ser desenhado num pequeno papel cinzento de limpar as mãos. Usar e deitar fora. É bom recordar. A vida é para se usar, mas não para se deitar fora...
Pousada de São Lourenço, Manteigas, sexta-feira, 27.09.2013. Dia de tempestade.

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