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"Pedidos a Jesus"...



Comparar uma criança a um livro é testemunhar a criatividade, a inspiração, os dotes e o caráter do novo ser. Não precisa de prefácio, entra-se de imediato na escrita, com uma introdução atabalhoada, desgarrada, com sons dispersos, olhares interrogadores e sorrisos de tranquilidade. Ao fim de algumas páginas de leitura ficamos na mesma, não se sabe o que é que vai sair dali, qual a história e o enredo da nova vida. As palavras começam a surgir, as frases adquirem corpo e o sentido da existência balanceia entre a fantasia e a realidade. Escrevem muito depressa, todos os dias surgem com novos conhecimentos, alguns ensinados, e muitos aprendidos, para não falar dos que vão construindo graças à sua imaginação e interpretação do meio que vão conhecendo. Precisam de papel e de tinta, coisas que não faltam por estas bandas. Dá-me particular prazer vê-los a escrever os seus próprios livros. Cada um com o seu estilo, a mais velha introspetiva, sensata, silenciosamente criativa e espiritualmente expansiva. O do meio, com a sua impregnação testosterónica, mais atrevido, portador de meiguice salpicada de traquinice quanto baste, uma espécie de pimenta que gosta de adicionar para temperar o seu comportamento, delicia-nos com a sua agilidade mental e inocência infantil. A mais nova surpreende com a sua visão do mundo, com a forma de interpretar os fenómenos e com um sentido de responsabilidade que atesta a boa qualidade dos capítulos que terá de escrever no futuro. Anda a "escrever" muito rapidamente a história da sua vida.
Há dias, na sequência de um episódio de sofrimento moral, viu num episódio de uma telenovela um bebé a ser abandonado, começou a chorar como uma Madalena e pediu à mãe o "fio com a cruz". Foi para o quarto e pôs-se a rezar a Jesus, pedindo dinheiro para ajudar as crianças que tinham fome, mas também pediu um pónei cor-de-rosa para si, porque a mãe não lhe podia comprar e nem ajudar os meninos que pedem à porta do supermercado. As histórias já foram contadas, já as escrevi para, caso assim o queira, poder mais tarde juntá-las ao seu "livro da vida". Vai querer, estou certo disso. No dia seguinte, de manhã, cedinho, Jesus colocou debaixo da sua almofada o pónei que tanto desejava. Assim que o viu quis dar, de imediato,  conhecimento de tão generosa atenção de Jesus ao avô. Tão cedinho, meu Deus! Hoje, numa consulta, a primeira que comecei a realizar numa cidade vizinha, uma senhora foi a mensageira do outro pedido que a minha neta tinha feito a Jesus na sua oração espontânea. Não a via há muito tempo, muito mesmo. Tivemos uma criação na mesma terra, partilhámos as casas, valores e educação. Depois, a vida encarrega-se de separar o que natureza criou em conjunto durante alguns anos. Mas a vida, por vezes, fica com remorsos e volta às primeiras páginas da existência de cada um. Ainda bem, talvez goste de reler velhos livros. A conversa delineou-se em redor de vários assuntos, entre os quais a família e a leitura de algumas histórias. Subitamente, sem estar à espera, referiu ter lido a oração da Leonor, quando pediu a Jesus dinheiro para poder dar às crianças pobres. Sorri com esta observação que muito me agradou. Sem dar conta colocou-me na mão uma quantia apreciável. Olhei para o dinheiro e para a senhora, mas antes que fizesse qualquer pergunta, referiu que gosta muito das histórias da menina e que ela agora podia satisfazer o seu desejo. A conversa continuou sobre assuntos mais ou menos específicos e não foi feita mais nenhuma menção a tão generoso gesto.
Cheguei a casa e chamei: - Leonor! LEONOR! - Sim. - Onde estás? - Aqui vovô. Carregou a toda velocidade atirando-se ao meu pescoço como é habitual. - Toma! O Jesus mandou entregar-te este dinheiro através de uma senhora para ajudares os meninos. Apesar de ser pequenina, olhou e disse: - Tanto dinheiro! Tanto dinheiro! E disparou a correr para dizer à avó: - Vovó, olha o que Jesus me deu. Tanto dinheiro. É para dar aos meninos pobres. - E tu vais dar o dinheiro aos meninos? Perguntou a avó. - Não! Não vou, não. Vou mais a minha mamã ao supermercado comprar comida para dar aos meninos com fome.
Bom, a oração da miúda foi ouvida. Ficou calma, recebeu o pónei cor-de-rosa que tanto queria e conseguiu dinheiro para comprar comida para os meninos.
Há orações que são mesmo ouvidas e livros que prometem ser belos. Vale a pena ajudar as crianças a escrevê-los.

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