"Viagem à volta do fumo"...



Gosto mais de viajar para o norte e leste do país, onde encontro sempre coisas novas e regalo-me com as velhas. Pensei, é raro andar para as bandas do litoral. Hoje vou nessa direção, pode ser que consiga encontrar motivos ou um verso para compor à noite. 
Ao chegar a Mortágua guinei para a direita. Massena teve que recuar no Buçaco e passou por estas bandas em direção a Coimbra. Na altura deveriam ser descampados, pedras soltas e revoltas. Hoje, um tapete gigante de eucaliptos tapa aqueles vales e outeiros. Se ainda houver algum soldado francês perdido não vou conseguir vê-lo. Pensei nisso, porque desejei vê-los na esquina de alguma curva. Que raio de ideia, o que é que eu iria fazer ou dizer? Devíamos ficar os dois assustados, talvez mais ele do que eu. Andar por estes lados obriga-me a rememorar e a "recordar" certos acontecimentos, como se houvesse qualquer coisa a puxar para o passado. Esbarrei em Águeda onde deambulei pela cidade enfeitada com coloridos chapéus nas ruas lembrando-me o quanto custa estar ao sol e quanta falta faz a chuva. Não muito longe as ondas de fumo impregnavam as encostas da serra do Caramulo, da qual fugi como o diabo da Cruz, embora sentisse uma nostalgia por não poder calcorreá-la como faço todos os anos. Retive vários apontamentos e algumas frases desenhadas na coluna onde está colocado o busto de um grande homem, Albano de Mello, que disse um dia no Parlamento, "A minha terra é a mais linda de Portugal". Sorri. Porque é uma frase que muitos de nós seria capaz de dizer a propósito da sua terra. Ser-se linda é uma questão de olhar, não através do sentido físico da visão, mas através dos sentidos da alma, onde olhos invisíveis veem, ouvem, falam e encantam ao mesmo tempo. Os restantes breves dizeres da coluna foram suficientes para quebrar laços de desconhecimento. Deste modo ficámos formalmente apresentados, esperando retomar a conversa um dia destes. Em seguida deixei-me guiar pelo evoluir confrangedor das colunas de fumo, que iam evolando sempre do meu lado direito. Acabei por visitar Oliveira de Frades. Não conhecia. Gostei da vila, arejada, planeada, limpa e florida, um pequeno encanto que delicia quem a visita e que tranquiliza quem por lá vive. Tive pouco tempo para a desfrutar, mas, mesmo assim, deslumbrei-me com lindas janelas quinhentistas e oliveiras aparadas e acariciadas aos pés por belas flores fazendo lembrar santas alvo de qualquer devoção. Não por a vila ser Oliveira, já que o seu nome provém de Ulveira, lameiros, locais onde abunda a ulva, terrenos ricos que devem ter atraído quem deles necessitava para viver. O tempo acasalou os dois nomes. E procriaram. Depois regressei a casa, passando por velhos locais bem conhecidos, hoje tristemente mergulhados num estranho nevoeiro de fumo que amarelecia os campos, as florestas e as almas, recordando tragédias, tragédias que não se esquecem. 
Uma viagem à volta do fumo.

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